Simone Fernandes Pinheiro de Moraes
Escola de Psicanálise de Curitiba, PR
Resumo
O presente artigo tem por objetivo contribuir na compreensão da obesidade como resultado do comer compulsivo advindo de fatores emocionais adquiridos ainda na primeira infância, segundo uma abordagem psicanalítica.
Considerando, ainda, os fatores presentes na relação estabelecida entre o indivíduo e a alimentação e quais são as condições psíquicas suficientes para a construção saudável deste vínculo.
Utilizando como método uma revisão de literatura narrativa, especialmente de obras apoiadas nos textos de Freud e Winnicott.
Palavras-chave: Psicanálise; Obesidade; Alimentação; Ambiente; Afetos.
Introdução
A obesidade é uma doença crônica, definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como o acúmulo anormal ou excessivo de gordura no corpo.
Vários são os fatores que contribuem para o seu aparecimento, por exemplo, a genética, o ambiente em que se vive, estilo de vida e fatores psicológicos, dentre outros. Podendo-se destacar a baixa autoestima, depressão, ansiedade e angústia como fatores preponderantes no desenvolvimento de compulsões, aqui destacada a alimentar.
Ninguém se torna compulsivo repentinamente, é amplamente verificado que a soma de diversos elementos e situações podem ocasionar o referido transtorno, além de tantos outros.
O indivíduo que desenvolve o transtorno em questão já na fase adulta, não deve se sentir culpado por isso, pois em algum momento, ainda na infância, seguramente, algo se deu para que ele precisasse preencher um sentimento de vazio. Agora surge a necessidade de tratá-lo, assim é necessário encontrar a origem desse afeto, o porquê de ir buscar a solução na compulsão alimentar.
No ato compulsivo de comer se esconde uma dor emocional que, enquanto não for tratada, sangrará como uma ferida, onde o curativo será sempre a comida.
Sendo assim, se faz necessário compreender, à luz da psicanálise, as possíveis razões que podem desenvolver no sujeito uma relação conflituosa com a comida e ao mesmo tempo, avaliar quais são as condições psíquicas capazes de reconstruir a relação saudável do indivíduo com o alimento.
“Quem tenta preencher seus vazios com excessos, terá invariavelmente, um excesso de vazios” (Gómez, G. 2023)
Desenvolvimento Emocional do Bebê
Donald Woods Winnicott (1896 – 1971) pediatra, psicanalista e psiquiatra infantil, afirma que os bebês partem da total dependência e identificação com a mãe para iniciarem seus processos complexos, mas naturais, de desenvolvimento e crescimento. A formação da estrutura psíquica também se dá desde os primeiros dias de vida do bebê.
Winnicott defende que todos os indivíduos têm uma tendência inata à integração com uma predisposição de crescimento, desenvolvimento e pertencimento ao ambiente no qual estaria interagindo. Em um primeiro momento esse ambiente se restringe à mãe e ao bebê que com o tempo vai rompendo as fronteiras e ampliando as relações, de forma integrada e participativa.
Logo ao nascer, nos primeiros dias, até por volta dos seis meses de vida do bebê, ele apresenta o que se chama de dependência absoluta, ou seja, se não houver uma presença, uma acolhida desse ambiente, o bebê não terá como se desenvolver.
Há fatores fundamentais nessa fase, o primeiro deles é a amamentação, que pode ser interpretada como uma forma de satisfação de necessidades afetivas, além de nutrição.
A relação do bebê com a comida pode ser vista como uma das primeiras formas de conexão emocional que ele estabelece com o mundo ao seu redor.
A forma como a alimentação é administrada ao bebê, bem como a relação com a figura materna, podem ter um impacto significativo no desenvolvimento da relação da criança com a comida e, consequentemente, com o corpo. Por exemplo, se a amamentação é interrompida prematuramente ou se a mãe apresenta ansiedade ou insatisfação em relação à alimentação, isso pode levar a traumas emocionais e dificuldades na relação com a comida no futuro (Winnicott, 1988).
Ambiente Suficientemente Bom
A teoria de Winnicott baseia-se no fato de que a psique não é uma estrutura pré-existente e sim algo que vai se constituindo a partir da elaboração imaginativa do corpo e de suas funções – o que constitui o binômio psique-soma. Essa elaboração se estrutura a partir da possibilidade materna de exercer funções primordiais como o holding (permite a integração no tempo e no espaço), handling (permite o alojamento da psique no corpo) e a apresentação de objetos (permite o contato com a realidade).
O psique-soma inicial prossegue ao longo de uma linha de desenvolvimento desde que sua continuidade de existência não seja perturbada, e para que isso ocorra, é necessário um ambiente suficientemente bom, onde as necessidades do bebê sejam satisfeitas.
“Do meu ponto de vista, a saúde mental do indivíduo está sendo construída desde o início pela mãe, que oferece o que chamei de ambiente facilitador, isto é, um ambiente em que os processos evolutivos e as interações naturais do bebê com o meio podem desenvolver-se de acordo com o padrão hereditário do indivíduo. A mãe está assentando, sem que o saiba, as bases da saúde mental do indivíduo.” (Os bebês e suas mães – D.W. Winnicott,1988)
Um ambiente mau é sentido como uma invasão à qual o bebê precisa reagir e esta reação perturba a sua continuidade de existência. O adoecimento, então se dá devido às perturbações na relação mãe-bebê que provocam falhas no desenvolvimento do indivíduo. Tais perturbações criam uma sensação de falta de fronteiras no corpo, ameaças de despersonalização, angústias impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento, de cair para sempre, e falta de coesão psicossomática (Winnicott, 1983).
Vazio Existencial
A função materna se refere à necessidade de cuidado e proteção, que é normalmente satisfeita pelas mães desde o nascimento do bebê. Quando a necessidade de cuidado e proteção não são satisfeitas, poderá dar ao bebê a sensação de vazio que, no futuro, se apresentará na forma de traumas procedentes desta fase, e por sua vez manifestando sintomas, dentre eles, a compulsão alimentar.
Segundo Freud, na obra “Conferências XXIII: Os caminhos da formação dos sintomas”, o sintoma é um substituto da satisfação frustrada, realizando uma regressão da libido a épocas anteriores de escolha objetal ou de organização (Freud 1917).
“Essa volta a estágios do desenvolvimento das primeiras relações objetais se manifesta nas mais diversas formas de sintomas compulsivos, seguindo a lógica do excesso onde tudo se junta na tentativa de preencher vazios internos. O alimento é incorporado como substituto de objetos faltantes no universo interior. Essa compulsão, presente atualmente nas adicções, no consumo, na alimentação, são formas de tentar suprir o vazio do eco identitário. Assim, pode-se considerar que o corpo está em primeiro plano na manifestação sintomática do sofrimento, na passagem ao ato, na falta de simbolização”. (Vianna, M. 2016)
O desencadeamento da pulsão não encontra obstáculos e a luta contra a sensação de vazio interior não encontra solução. Essa é uma lacuna de difícil interpretação afinal por trás da impressão de vazio físico, é de vazio psíquico que o sujeito sofre, como se estivesse totalmente desprovido de objetos internos e precisasse suprir essa falta pela ingestão de objetos externos indiferenciados.
Winnicott apresenta um importante conceito para se pensar a questão do vazio, é o de espaço transicional. Esse espaço é o intermédio entre o sujeito e o objeto, e se origina da relação inicial entre a mãe e o bebê, na separação e união da criança com sua mãe, permanecendo ao longo da vida. A falta desse espaço transicional, no qual a criança pode criar, geralmente são substituídas por um vazio angustiante ou pela tendência desesperada de ocupá-lo com situações ou objetos.
Considerações Finais
Segundo Winnicott, a alimentação é uma das primeiras formas de cuidado que a criança experimenta, e a relação com a figura materna é fundamental para o desenvolvimento saudável da relação da criança com a comida. Se a relação com a mãe é insuficiente ou conflituosa, a criança pode aprender a utilizar da comida como forma de suprir suas necessidades emocionais não satisfeitas, proporcionando conforto e segurança. Nesse contexto, a compulsão alimentar poderá ser entendida como uma forma de defesa do ego contra a insatisfação e a frustração.
Quando o transtorno se instala, e o bebê agora já é um adulto, é possível encontrar em seu discurso a referida queixa de vazio existencial e que se busca na ingestão de alimentos, o preenchimento desse vazio, podendo vir a causar, organicamente, um ganho excessivo de peso, advindo da compulsão alimentar, a obesidade. Sendo assim, é possível concluir que diante à ausência da função materna, houve naturalmente uma falta de compreensão por parte do bebê, acerca da mãe ideal (suficientemente boa) logo ele tanto rejeita esse afeto em forma de repulsa alimentar ou aceita tudo, deslocando para a ingesta de alimentos a ingestão de afetos.
As vivências traumáticas neste período poderão ser transformadas no piloto que conduzirá esse indivíduo, tornando-o refém dessa criança interior adoecida que, certamente, virá à luz em formas de sintomas que, enquanto não são trazidos do inconsciente para a consciência, continuarão se manifestando, levando o sujeito a adoecer física e emocionalmente.
A Psicanálise, por meio dos psicanalistas, terá a função de integrar este sujeito, num setting suficientemente bom, ou seja, um espaço estável, onde se estabeleça uma relação de confiança e acolhimento, para que ele possa se aproximar ou reviver aquele estado inicial e assim dar continuidade ao seu processo de desenvolvimento, ressignificando sua atualidade.
Superar a compulsão alimentar significa levar o sujeito à construção de sua própria identidade, a se compreender, entender seu funcionamento e a possibilidade de encontrar vias simbólicas para representar seu sofrimento, a lidar com a falta, com o vazio que é inerente ao ser humano e a partir daí, poderá trilhar seu percurso e estabelecer uma relação saudável com seus sintomas e, consequentemente, deixará o padrão do Outro pelo caminho, vivenciando um processo libertador.
FREUD, S. (1917). Conferências XXIII – Os caminhos da formação dos sintomas. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.16. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Obras completas, v.6. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Gabriel (@gabrielgomez_psicanalista). Gabriel. Instagram, [on-line], [31/01/2023]. Disponível em: https://www.instagram.com/gabrielgomez_psicanalista/. Acesso em 17 fev. 2023.
VIANNA, Monica. Da geladeira ao divã: psicanálise da compulsão alimentar. 1ª ed. Curitiba, PR: Appris, 2016.
WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação: Estudo sobre a teoria do desenvolvimento emocional de maturação. Tradução de Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre, RS: Artmed, 1983.
WINNICOTT, Donald W. Os bebês e suas mães. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 1ª ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.